Nem arquibancada, nem passarela: a rua é o lugar da revolução! e “O gigante acordou” e está abrindo portas ao fascismo!

Renan Meireles/aluno do Departamento de Geografia/FFLCH-USP

 

Dezenas de milhares de manifestantes em São Paulo bradam em alto e bom som: “o povo acordou!” Mas o que essa frase pode nos revelar? Quem e o que está por trás dela? E, afinal, quem acordou? Na mesma manifestação um jovem levava um cartaz escrito: “Se você acordou agora, atenção, a periferia nunca dormiu.”

Algumas perguntas me intrigam. Na quinta-feira, dia 13/06, o ato pela revogação do aumento da passagem em São Paulo contava com no máximo 20 mil pessoas. Quatro dias após, dia 17/06, éramos mais de 200 mil pelas ruas de São Paulo. E a pergunta, quem são e de onde saíram estas 180 mil pessoas?

Coloco aqui minha opinião e espero a contribuição de todos. Confesso que nos primeiros momentos, quando vi o Largo da Batata e a Faria Lima, tomados por pessoas de todos os tipos, cores e crenças fiquei animado. Afinal, diante do marasmo, qualquer fagulha é fogueira.

Mas a animação foi passageira. Comecei a ouvir os gritos de “fora os partidos”, “orgulho de ser brasileiro”, “o povo acordou” e por ai vai! Senti uma inquietação que me dominava ao perceber que eu era solitário em meio a multidão. Os gritos já não me representavam as faixas e cartazes muito menos. A cada vez que eu via alguém embrulhado na bandeira de São Paulo ou do Brasil lembrava do ascenção de Mussolini na Itália. Mas mesmo assim continuei firme, andei até o fim, até o Palácio do governo do estado, que para muitos seria o lugar do fim, de cortar a cabeça do rei, do governador. Ouvi pessoas bradando frases da revolução francesa e dizendo “se entrarmos queremos a cabeça do rei”. Foi o fim! Tomado pelo cansaço da maratona já não podia suportar as barbaridades que via e ouvia.

Durante os muitos quilômetros que percorremos, mais de 20, vi dezenas de milhares de policiais. Eles não estavam fardados e não possuíam armas de fogo. Estavam alegres, pulavam, traziam cartazes e cantavam o hino nacional. Tiravam fotos uns com os outros, aplaudiam pessoas no Shopping Iguatemi e deliravam ao ver papéis picados caindo de cima dos altos prédios na Berrini.

Em certo momento gritavam: “da copa eu abro mão: quero dinheiro pra saúde e educação”. Minutos depois um dos manifestantes tenta atear fogo no relógio da Copa do Mundo numa das esquinas da Berrini e quase é linchado pelos policiais, quero dizer, manifestantes.

Neste dia não vi a polícia militar impor normas ao espaço público. Os próprios manifestantes faziam isso. Neste dia não vi a polícia militar prender e reprimir ninguém, os próprios manifestantes faziam isso. Neste dia vi cada manifestante fazendo o papel repressor e normatizador do Estado.

Depois destas experiências, parece-me que é viável pensar que quem saiu às ruas na segunda-feira, dia 17/06, foi a famigerada classe média paulistana. Trouxe consigo todos os seus preconceitos, seus modos de pensar, suas ideologias. Foi além disso, trouxe à tona o mundo do consumo e o esvaziamento político próprio da grande maioria dos jovens citadinos. E isso pode até parecer prepotência!

Parece-me que a célebre frase, “saímos do facebook” revela essa juventude, que até ontem estava em frente a uma máquina, buscando o modelo mais novo do tablet ou esperando na fila para comprar o lançamento ipod X.

Para eles a rua era como uma passarela, uma arquibancada ou até mesmo uma vitrine. Cada um queria aparecer com a sua indignação, seu cartaz ou seu grito. Os flashs eram muitos e de todos os lados. As pautas traziam todas as emoções reprimidas de uma geração enclausurada no espaço privado. As pautas revelavam uma geração esvaziada de conteúdos políticos concretos. Uma geração mimada que cresceu sem ouvir “não” e não tinha a menor ideia do que se passava. O que se via era a emoção do jovem que sai de casa pela primeira vez. Bom, mas isso em si não parece ser o maior dos problemas.

A questão a ser colocada é: a enorme quantidade de energia, trazida por essa multidão de pessoas na rua será canalizada para manifestações de fato “progressistas”, concretas e que tragam avanços políticos e sociais no Brasil? Ou essa energia, por vezes inocente, servirá de massa de manobra para a ascenção da direita ultraconservadora?

Espero estar errado, mas ontem na avenida paulista pôde-se ver uma multidão passeando de um lado para outro, e um grupo, grande, de pessoas incitando o ódio, a luta antipartidária, vestindo bandeiras do Brasil, do estado de São Paulo e portando capacetes da revolução constitucionalista. Integrantes de partidos de esquerda sendo agredidos fisicamente e bandeiras vermelhas sendo queimadas.

Nos grupos e clubes militares, chama-se o povo a lutar contra o governo comunista. Grupos neonazistas chamam o povo a lutar contra a corrupção e os partidos comunistas e queimar suas bandeiras.

Parece-me que atrás das bandeiras e máscaras do “não vandalismo” e da “não violência” o conservadorismo reacionário se esconde. Escondido cresce assustadoramente e começa a levar a multidão consigo, multidão esta que anda conforme a música, conforme a ingenuidade e conforme ao que lhe parece mais pertinente. As máscaras muito vistas nas manifestações surgem como metáfora. Escondem o conservadorismo, gestado num país comandado por uma direita  que tenta a todo custo, retirar, por exemplo, as disciplinas de geografia e história do currículo básico. O povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la. A frase de Marx nunca fez tanto sentido pra mim. “A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”

O sentimento é de que a multidão parece ser levada ao abismo. A rua aparece como passarela e arquibancada de milhões de indignados que não sabe para onde ir, mas vão, ao som do hino nacional e de gritos que vão trazendo o conservadorismo já muito conhecido.

Hoje, sites, jornais impressos e televisivos trazem as seguintes notícias: “Joaquim Barbosa será convidado para disputa presidencial pelo Partido Militar”; “Comissão regulamenta eleição em caso de vacância da Presidência”; “Forças militares prontas para agir com o povo”; “Após hostilidade a partidos e 'pauta conservadora', MPL anuncia fim de atos”; “Manifestantes de Santos 'deduram' vândalos sentando durante protesto”.

Bom, desculpem o texto mal escrito (é o que temos pra hoje, diante das turbulências da vida) e sinceramente espero que esse texto não faça o menor sentido, que seja criticado por todos e que eu esteja errado em absolutamente tudo e que daqui alguns meses eu dê risada lendo-o novamente! 

 

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A luta é urbana, o caminho esta ainda sendo construído.

   Ana Fani Alessandri Carlos   

             O urbano é agora a escala do mundo. O que esta posto para o debate como produto da contestação,  como momento em que a luta se impõe como necessidade e desejo (entrando em conflito com a passividade do cotidiano), numa escala mais ampla, é o "direito à cidade", como direito à vida urbana em sua plenitude. E só o debate e a reflexão permitirão pensar os passos seguintes.

                O corpo tomando os espaços construídos para os carros vão revelando os conflitos que estão na base de nossa sociedade. Algumas questões aparecem no horizonte: a) o voto na urna tem justificado, que depois de eleito, o político e o partido podem fazer o que quiserem e como quiserem.  Os partidos políticos fazem alianças sem se preocupar com o que a sociedade pensa, mas em "nome dela". Um minúsculo exemplo revela o modo como se faz política no Brasil: o vice-governador de São Paulo é ministro e não vê nenhum problema nesta atitude, e todos acham normal e pior, acham que é tema para o debate! Seria irônico se não fosse trágico! O exercício de  nossa democracia precisa ser repensada;  b) as ruas - espaços públicos por excelência, mas pensado como lugar dos carros - apontam  indignação e descontentamento com a vida na metrópole e o modo como se constrói o espaço urbano separando moradia do trabalho e lazer. A proposta do "Arco do Futuro" não vai  resolver este problema. Os frequentes processo de valorização do espaço urbano tem afastado os pobres para  periferias cada vez mais distantes,  situação que o projeto vai aprofundar; c) o transporte é apenas um dos direitos do cidadão. Ele precisa morar dignamente, ter acesso a saúde, alimentação. Ele precisa de educação de qualidade e cultura, ao lazer. E acesso ao centro e a centralidade metropolitana! Diretos de ir e vir, num transporte coletivo digno e ubíquo na metrópole que garanta, em pouco tempo, o direito de acesso à vida na metrópole e com horários estendidos. Não se diminui o preço da passagem de ônibus aumentando o IPTU, mas repensando o orçamento e suas prioridades, o modo com o ele se constrói  as alianças que privilegiam os setores imobiliários, as empresas de  transporte, as grandes construtoras, o modo como se abrem os cofres públicos criando infraestrutura e incentivos para a iniciativa privada, sob o discurso de que geram empregos; d) o aprofundamento da  segregação como característica de uma metrópole que se constitui  como negócio passível de ser lida  pela valorização advinda da construção de infraestrutura que abre espaço para novos negócios privados em detrimento dos moradores dos lugares atingidos, posto que expulsam a "população não compatível" (para utilizar um termo corrente no planejamento) nas das áreas renovadas, etc..

                A cidadania não tem por conteúdo a qualidade de vida, nem sem reduz à posse de  bens de consumo. As manifestações urbanas, por excelência, apontam os problemas vividos e, porque urbanas, reúnem uma gama de situações que iluminam os níveis da realização da vida e da necessidade de participação, de forma mais ativa, nas decisões. Portanto o direito de ser ouvido e de participar dos rumos da sociedade como um todo.

Numa sociedade urbana a luta realiza-se  de outra forma e o modo de lidar com ela é não criminalizá-la nem subestimá-la. Estamos adentrando numa nova forma de sociedade que exige uma novo modo de diálogo que é o que esta sendo construído, agora, nas ruas.

 

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Nem 3,20 nem 3,00: o problema é bem mais complexo.

Ana Fani Alessandri Carlos

 

A porcentagem de população que esta abaixo da linha da pobreza diminui, no Brasil, mas uma parte significativa da população da metrópole paulistana vive com salários irrisórios aonde a concentração exacerbada da riqueza separa e segrega com violência (a violência como conteúdo da urbanização, que não aparece nos jornais, nem ganha espaço nos noticiários). Em São Paulo, no ano de 2010, 36,4% da população recebia até 2 salários mínimos. Numa metrópole que se reproduz aumentando cada vez mais o deslocamento casa/trabalho e a fadiga do percurso (subtraindo o tempo do lazer e do descanso), o preço e a qualidade do transporte (aliado políticas urbanas que expulsam os pobres das áreas centrais de metrópole) limita a realização da vida. Daí as cenas dos transportes insuficientes, lotados transportando por horas à fio, trabalhadores apinhados como gado, que vivem amontoados nas periferias desurbanizadas. Já a vida cotidiana se apresenta, tendencialmente, invadida por um sistema regulador, em todos os níveis, que formaliza e fixa as relações sociais reduzindo-a a formas abstratas limitando os usos do espaço diluindo direitos de acesso à metrópole como um todo.

Matar a fome, dar acesso precário à moradia, permitir o ir e vir com altos preços e pouca qualidade não é construir as condições necessárias à realização do humano, é apenas esboçar "direitos" que asseguram a legitimidade da expropriação infinita e sempre reposta da desigualdade socioespacial. Deste modo a prática espacial na metrópole aponta o empobrecimento e a deterioração da vida social que é fonte de privação diante da extensão da mercantilização que vai junto com a privatização do mundo. Portanto, a situação do cidadão reduzido às condições de mera sobrevivência aponta a destituição do sentido da vida e da dignidade humana e realiza a desigualdade como seu fundamento.
Assim o processo de urbanização é condição mas também produto da realização do processo de crescimento, sob a lógica e racionalidade, que sustenta uma sociedade que vive sob o império sombrio da norma, da regularização que se impõe ao sujeito subsumindo-o e impondo às relações sociais suas estratégias como naturais da sociedade.
Convém não esquecer que a desigualdade é a condição histórica que se repõe constantemente ganhando novos contornos e aprofundando-se: o aumento do desemprego, a deterioração do emprego formal, a extrema concentração de renda, a fome, a vida como sobrevivência, são o desdobramento de uma história anunciada de uma exploração desmedida perpetrada pelo processo de crescimento que não gera desenvolvimento, apesar da retórica.
Mas o cidadão desprovido dos conteúdos da cidadania continua se reproduzindo numa luta constante pela sobrevivência e nela a consciência de que reduzido a suas necessidades básicas (comer, beber, dormir,) realiza a condição inicial e natural de sua vida como o outro do humano. Daí a resistência!
Os movimentos sociais sinalizam, portanto, a consciência da "privação", e portanto, sua leitura não pode fechar-se à esfera dos bens necessários a realização da vida, posto que iluminam a escala da realização dos desejos de criação de um projeto capaz de abrir-se para a construção de uma outra sociedade. Não se referem, portanto à escala, do ter - presa a necessidade e ao consumo. As lutas surgem nos interstícios da vida cotidiana como consciência das desigualdades vividas em vários planos. Portanto as resistências apontam um único significado reunindo várias perspectivas (bandeiras) nas quais se realiza a desigualdade e a privação constituidoras da vida metropolitana. Ao se unirem os movimentos reivindicatórios questionam aquilo que funda nossa sociedade: a apropriação diferencial da riqueza, a desigualdade, os desmandos do poder. Movem-se no sentido de questionamento da lógica do crescimento e das alianças políticas que se realizam contra o social. Aparecem como luta pelo espaço da metrópole, por um espaço democrático aonde possam exprimir-se e decidir sobre seu destino.
Assim as lutas introduzem e exigem práticas democráticas postando na mesa de negociações os interesses da sociedade como um todo contra os interesses dos empresários, como realização objetiva de lucros seja nos setores diretamente produtivos, seja no plano dos investimentos e da especulação.Portanto, a renda é significativa mas não revela a extensão da crise urbana que é antes, social.
O recurso irracional à força impede o diálogo e amordaça a livre manifestação da discordância, fundamento da democracia.
 
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Mapas das Operações Urbanas em São Paulo

Por Lívia Maschio Fioravanti

Mestranda em Geografia Humana - USP

 

            Dando continuidade às discussões publicadas pelo GESP sobre incêndios criminosos em favelas, ressaltamos a importância de um mapa elaborado pelo jornal Brasil Atual mostrando pela primeira vez uma sobreposição de incêndios em favelas e as Operações Urbanas vigentes e previstas em São Paulo[1].  

            As Operações Urbanas são uma das faces mais perversas dos projetos de requalificação urbana em São Paulo. Elaboradas a partir de mecanismos que legitimam e intensificam a concentração de renda e a expulsão da população de menor renda para áreas mais distantes da metrópole, as Operações Urbanas são um “mecanismo de exceção” que “costuram” grande parte da cidade de acordo com as conjunturas mais favoráveis aos agentes do mercado imobiliário.

            As Operações Urbanas geralmente se localizam em áreas já visadas pelo mercado imobiliário (que recebem ainda mais investimentos) e nas quais, muitas vezes, habitavam ou passam a habitar moradores de maior renda (mapa 1). Treze Operações Urbanas foram previstas pelo Plano Diretor Estratégico de 2002 e atualmente outras três são previstas pela Prefeitura Municipal de São Paulo (Lapa - Brás, Mooca - Vila Carioca e Rio Verde - Jacu) (mapa 2). A Operação Urbana Lapa – Brás e a Operação Urbana Mooca – Vila Carioca foram formadas a partir do reagrupamento de outras Operações Urbanas anteriormente previstas (visando aproveitar, segundo o poder público, antigos espaços industriais ou o entorno de linhas de trem), já a Operação Rio Verde – Jacu teve seu traçado ampliado. Nessas regiões da metrópole são previstos grandes projetos, como na zona leste de São Paulo, onde a Operação Urbana Rio Verde - Jacu ganha uma importância crucial aos interesses imobiliários devido à construção do estádio Itaquerão para a Copa do Mundo de 2014.

            Mesmo que muitas delas ainda estejam em projeto, o impacto é cruel na vida cotidiana dos habitantes da metrópole: incêndios criminosos são realizados como forma de expulsar os moradores mais pobres desses espaços que passam a ser um alvo mais intenso do mercado imobiliário. De acordo com o levantamento da reportagem já citada, parte da concentração de 89 incêndios em favelas ocorridos entre janeiro de 2008 a agosto de 2012 na cidade de São Paulo está próxima das Operações Urbanas Águas Espraiadas e Faria Lima, ambas em vigor, e das novas Operações Urbanas previstas (mapa 3). Vale notar também o grande número de desapropriações que podem ocorrer na região da Operação Urbana Rio Verde – Jacu, como se observa no mapa 4.

            Os mapas abaixo são uma tentativa de representar esses processos:

Mapa 1. Renda média por chefe de família por setor censitário (2010) e valores gastos até julho de 2012 pela Prefeitura Municipal de São Paulo nas Operações Urbanas vigentes. Mapa elaborado por Lívia Maschio Fioravanti. Dados dos valores investidos nas Operações Urbanas disponíveis em <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/ desenvolvimento_urbano /sp_urbanismo /operacoes_ urbanas/>.

 

 

Mapa 2. Renda média por chefe de família por setor censitário (2010), Operações Urbanas vigentes, Operações Urbanas previstas no Plano Diretor Estratégico de 2002 e Operações Urbanas lançadas em 2009.  Mapa elaborado por Lívia Maschio Fioravanti e Willian Magalhães de Alcântara. Fonte: CENSO, 2010 e SMDU, 2013.

 

 

Mapa 3. Localização de incêndios em favelas de 2008 a 2012 e Operações Urbanas vigentes e previstas pela Prefeitura Municipal de São Paulo. Mapa adaptado por Lívia Maschio Fioravanti e Willian Magalhães de Alcântara a partir de material disponível em <http://www.redebrasilatual. com.br/temas/cidades/2012/09/mapa-revela-coincidencia-entre-favelas-incendiadas-e-operacoes-urbanas-de-sp>.

 

 

Mapa 4. Mapa das remoções. Disponível em <http://observatoriode remocoes.blogspot.com.br/>.

 


[1] Reportagem “Mapa revela ‘coincidência’ entre favelas incendiadas e operações urbanas em São Paulo”. publicada em 28 de setembro de 2012.  Disponível em <http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidades/2012/09/mapa-revela-coincidencia-entre-favelas-incendiadas-e-operacoes-urbanas-de-sp>. 

 

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NOTÍCIAS DE EXPERIÊNCIAS DE LUTA PELA MORADIA – I

Fabiana Valdoski Ribeiro

valdoski@usp.br

fabianavaldoski@gmail.com

Barcelona – Fevereiro – 2013

Logo no início de um texto, Seabra (1996:71), ao tratar da obra de Henri Lefebvre, expõe que o núcleo do pensamento do autor é o uso. No entanto, a busca não está apenas na apreensão do uso em si, mas na contradição que se dispõe em relação ao par dialético troca. É esta relação entre uso e troca que nos deparamos quando tentamos esmiuçar os processos de resistência no espaço urbano. O uso – emprego do tempo num determinado espaço – revela o embate com a tendência lógica da quantificação e da eficiência do tempo, bem como o confronto com a instrumentalização do espaço.

Diante destes conflitos entre uso e troca, consideramos que a resistência é plástica e se conforma de acordo com o embate estabelecido entre os sujeitos implicados nas estratégias de produção do espaço, e, justamente por isso, as formas de uso também se diversificam. É esta diversidade que queremos apresentar diante de duas experiências de luta pela moradia na cidade de Barcelona/Catalunha/Espanha.

Ambas envolvem a ação corporal (o uso do tempo e do espaço pelo corpo). A primeira é a ocupação de ruas para manifestação e, a outra, se refere a ações imediatas no dia-a-dia, como plantar, colher, cozinhar e, desse modo, resgatando o sentido de ciclo vital. De acordo com Harvey (2004: 135), o corpo é utilizado como estratégia de acumulação, impregnado de representações e envolvido nas tramas do quantitativo. Todavia, ele não se põe como algo passível, ao contrário, está em permanente mudança e reação. E é isto, a nosso ver, que se constitui o irredutível: o movimento permanente de resistência do corpo a linearidade imposta pela estratégia de acumulação.

Em Barcelona, no mês de fevereiro de 2013, em pleno momento de grandes mobilizações contra a fase de despossessão feroz sobre a sociedade espanhola, houve também manifestações de grandes proporções em luta pelo direito à moradia.

Na mesma cidade, uma experiência de uso do espaço não muito recente por já ter mais de 11 anos, revela o morar como sentido de resistência ao processo de linearidade sobre o corpo e tenta repor, através do uso, relações cíclicas.  Na casa ocupada chamada de Can Masdeu, há como proposta o desenvolvimento de um modo de vida baseado na autogestão e nas relações coletivas.

Manifestação - 16 – F (16 DE FEVEREIRO) – STOP DESPEJOS – PELO DIREITO À MORADIA E CONTRA O GENOCÍDIO FINANCEIRO

A crise instalada nos últimos anos está intimamente ligada à financeirização do imobiliário. Na Espanha, o conjunto de leis que rege os créditos para hipoteca imobiliária é um dos mais perversos no mundo, principalmente, quando a família não pode mais continuar pagando a dívida contraída. Diferentemente ao Brasil, em que ao não podermos pagar a “casa própria” as entregamos ao banco e quitamos a dívida, na Espanha isto não ocorre.

Quando se firma um contrato de hipoteca, o vínculo da dívida não está diretamente condicionada ao imóvel em si, mas, ao valor de mercado no período de compra, sendo este a base para o endividamento. Disso resulta, que quando o valor do imóvel cai no mercado e a família não pode arcar com os custos da hipoteca, há uma diferença da dívida contraída, mesmo com a entrega do imóvel alienado, e que se deve continuar pagando. Portanto, aquele que se hipotecou é despejado e continua com uma parte da dívida para seguir pagando.

Casos absurdos ocorrem nessa dinâmica enlouquecida da hipoteca. Geralmente, a família que irá se hipotecar necessita dar alguma garantia, aparecendo a figura de um “fiador”. Na maioria das vezes, quem exerce esse papel são os pais ou avós que já são proprietários. Quando o casal ou família hipotecada não consegue arcar com as parcelas da dívida e se ordena entregar o imóvel (ação de despejo), muitas vezes, o banco que concedeu o empréstimo igualmente exige o bem do fiador. Nessa dança das hipotecas, os despejos, além de atingir o hipotecado diretamente envolvido, também alcança sua família, que já havia comprado um imóvel muitos anos antes (às vezes casas pertencentes a família à décadas). O resultado não é de apenas uma família despejada, mas sim duas. E se os dois imóveis não alcançarem o valor da dívida a equação fica desse modo: 1 despejo de família  hipotecada + 1 despejo de família proprietária + pagamento do restante da dívida pela família hipotecada = os bancos ficam com duas propriedades + com direito de pressionar as famílias envolvidas já que ainda há uma dívida a ser paga. Podemos imaginar perversidade maior no processo de financeirização?

Diante desse grave problema relacionado as hipotecas, se formou um grupo chamado de Plataforma dos Afetados pelas Hipotecas - PAH[1]. Cabe dizer, que movimentos relacionados ao direito a moradia digna já existia no país, como por exemplo, o V de Vivienda do qual se originou o grupo acima mencionado. Estes movimentos questionavam a tempos a lógica imobiliária em que Espanha está envolvida.

Com o aprofundamento da crise, as taxas de desemprego aumentam de maneira exorbitante[2] e associada a uma porcentagem muito grande de hipotecados, há um arrastão de inadimplência. Desse modo, o volume de despejos também esteve em taxas exponenciais. Segundo um dos maiores jornais da Espanha, em julho de 2012, era mais de 500 despejos ao dia no país[3].

As organizações da PAH de muitas cidades espanholas estiveram protestando nas ruas contra esse massivo processo de despejos, denunciando, o que a muito tempo os movimentos de moradia faziam, os absurdos da financeirização imobiliária ao nível social. A resistência continuou e novos caminhos foram abertos para lograr a interrupção de muitos dos processos de despejos das famílias.

Atualmente, um momento importante está ocorrendo. Uma das formas de luta é a exigência da dación en pago. O que isto significa? Quando a família não pode mais pagar a casa, ela a entrega sem continuar com as sobras de uma dívida originada de juros. Este procedimento é o que passa no Brasil. No entanto, não apenas esta reivindicação está na pauta. Há também as exigências de paralisação dos despejos e a criação de uma política pública de aluguel social. Para tanto, foi realizada uma campanha massiva para concretizar essas reivindicações. A partir da Iniciativa Legislativa Popular, que conseguiu 1,4 milhão de assinaturas, levaram ao Parlamento Nacional, uma proposta de lei.

Em 16 de fevereiro de 2013, muitas pessoas se manifestaram nas ruas para pressionar a aprovação dessa legislação. Foi o uso do corpo sobre a rua a representação efetiva da convergência de uma luta pela moradia. Em Barcelona, a manifestação teve como ponto de chegada a sede do Partido Popular – PP (atual partido de governo).

Como se pode observar nas fotos abaixo, as faixas de protestos expõem claramente os sujeitos envolvidos no conflito e denunciam o mundo financeiro como motor da crise e da precarização da vida.

Foto 01 – Título da Manifestação – “Stop Despejos – Pelo Direito à Moradia e Contra o Genocídio Financeiro e Mostramos os Responsáveis”

16/02/2013

Foto 02 – Faixa de Manifestação “O Capitalismo Mata - Stop  Despejos"

16/02/2013

 

Foto 03 –  “A moradia é um direito”

16/02/2013

Foto 04 – Cartaz de Convocação para a Manifestação.

16/02/2013

 

Estas ações de pressão sobre o Parlamento para aprovação da legislação proposta continua nas cidades espanholas e o mecanismo principal de luta é a espacialização do corpo pelas ruas. Uma ação de uso que denuncia a despossessão de uma sociedade em profunda crise. Em março, as pressões populares conseguiram por adiante a discussão da lei.

CAN MASDEU

De acordo com Xavier, Leiva e Miró (2007:202), os novos protagonistas sociais trazem como inovação as relações imbricadas entre militância (política), vida e trabalho, ou seja, se propõem uma concepção unitária entre três momentos que tendem, insistentemente, a ser fragmentados pelo espaço-tempo subjugado aos ditames cumulativos. Para eles, é uma prática vinculada à existência e, portanto, avaliamos como uma ação de uso do espaço pelo corpo em que estão implicadas as concepções e práticas políticas ao nível social para mudar qualitativamente as relações e empreender um projeto de apropriação.

Um exemplo dessa integração, em que a resistência se realiza ao nível social e no espaço tempo da vida cotidiana, está nas ações de um grupo localizado no Vale de Can Masdeu - bairro de Canyelles - na serra de Collserola em Barcelona.

Trata-se de um grupo de jovens que ocuparam uma antiga casa sem uso e de propriedade de um dos hospitais existentes em Barcelona. Desde a década de 1970 a casa estava trancada, vazia e sem nenhum uso, como muitas das másias[4] existentes em torno do tecido urbano mais densificado. Diante desta realidade, os jovens de inspiração Okupa iniciaram uma nova história para o lugar. Começaram a promover, por meio de uma prática cotidiana, um uso diferente em que se pautava num modo de vida coletivo e ecológico.

O núcleo central do projeto é ser “uma coletividade viva”. Para isso, propõe ações de cooperação de trabalho e consumo, atividades de encontro e iniciativas de convivência coletiva. Um exemplo são as hortas coletivas em que os participantes não se resume ao grupo que vive na casa, mas é compartilhada com os moradores do entorno.

Para continuar com as propostas, tiveram que enfrentar as insistentes tentativas de desocupação judicial e resistiram completando dez anos de existência. Hoje, continuam com os projetos que envolvem o dia a dia de todos sendo o uso a base de transformação da vida.

 

Foto 05 – Can Masdéu – A Casa ocupada ao final de 2001. Antes pertencia ao Hospital de Santa Creu e estava abandonada desde os anos 1970.

24/02/2013

 

 

Foto 06 – Pintura em uma das paredes da casa representando o projeto.

24/02/2013

Foto 07 – A horta comunitária com princípios orgânicos. Além dos moradores cultivarem nessas áreas, os vizinhos também participam.

24/02/2013

 

Foto 08 – Indicação para o Centro Social onde se realizam festas e se vende comida para arrecadar fundos para a comunidade. Um dos princípios é se auto financiar para garantir autonomia nos projetos desenvolvidos.

24/02/2013

Foto 09 – Parque para crianças e ao fundo um reservatório de água potável para abastecer Can Masdéu.

24/02/2013

 

 

Bibliografia

Seabra, Odette. A Insurreição do Uso. In: Martins, J. S. Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo; Hucitec, 1996.

Arxiu Históric de Roquetes Nou Barris. Rutes per Collserola: Patrimoni natural i cultural. Barcelona, 2013.

Harvey, David. Espaços de Esperança. Edições Loyola: São Paulo. 2004.

Leiva, E., Miró, I., Urbano, X. De la protesta al contra poder: Nous protagonismes socials en la Barcelona metropolitana. Virus Editorial. Barcelona; 2007.

 

Sites e Artigos Digitais:

https://www.diagonalperiodico.net/

http://www.attacmadrid.org/wp/wp-content/uploads/w_DecalogoV.pdf

http://www.afectadosporlahipoteca.com/wp-content/uploads/2012/01/ilp_dacic3b3n-en-pago-retroactiva_moratoria-de-desahucios_alquiler-social.pdf

http://afectadosporlahipoteca.com/

http://huertosurbanosbarcelona.wordpress.com/00_huertos-urbanos-cultivando-barcelona/11-huertos-comunitarios/14-can-masdeu/

http://www.canmasdeu.net/?lang=en

http://www.elperiodico.com/es/noticias/barcelona/can-masdeu-cumple-anos-como-simbolo-integracion-okupa-1303832

http://economia.elpais.com/economia/2013/03/04/actualidad/1362406571_195097.html

http://elpais.com/tag/desahucios/a/

 
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Incêndio nas favelas: o urbanismo da destruição

 

Por Lucimar F. Siqueira. Fonte: http://www.blogspot.com/

"A cidade de São Paulo vive uma situação de repressão crescente e constante nos últimos anos. O símbolo menos visível dessa repressão, talvez, é o capital especulativo, reproduzido por bancos, empreiteiras e grandes corporações.

Entendemos aqui repressão como qualquer ação que vise a destruição da dignidade, dos direitos civis básicos e do direito a livre organização, conforme ensina nossa própria Constituição. Repressão também é expropriar, direta ou indiretamente, destruir casas, proibir comercio ambulante, higienizar, através da expulsão da população pobre, as áreas centrais da cidade, reintegrar a posse de prédios vazios com donos devedores, privar o acesso à equipamentos públicos, cobrar por transporte publico e sem qualidade, oferecer uma educação sucateada às classes sociais mais pobres, entre tantos outros fatos inerentes a uma urbanização pautada não nos interesses sociais, mas nos interesses econômicos de uma parcela da população que já detém a maior parte da renda – ou seja, uma urbanização que mantém as coisas como estão.

As polícias, cumpridoras sanguinárias da lei e da ordem, seguem executando covardemente algumas formas de repressão acima citadas (vide caso da comunidade Pinheirinho em São José dos Campos). Os governantes são diretamente responsáveis, inclusive pelos incêndios criminosos que ultimamente tem acometido as comunidades de trabalhadores pobres, as favelas, que, de tão marginalizadas historicamente, hoje são entendidas no senso comum como sinônimo de todas as coisas ruins que existem na metrópole.

Em São Paulo, existem 1600 favelas onde vivem milhares de famílias. Histórias de vida são reduzidas a pó a cada incêndio. Passam - se os anos, dezenas de favelas pegam fogo por causas acidentais ou não, e o que se percebe algum tempo depois (num espaço de dias, meses ou anos) é que essas áreas são destinadas ao jogo sujo do capital especulativo, daqueles que não tem coragem de se expor, mas que constróem condomínios de luxo ou equipamentos públicos que priorizam a exclusão . Tais areas nunca são destinadas a construção de moradia digna que possibilite a manutenção da população no local.

Essa, por sua vez, é enviada às periferias da grande metrópole para que a sociedade não veja a degradação do ser humano, uma vez que São Paulo, a locomotiva do Brasil, não pode demonstrar suas mazelas às pessoas de bens que por ela transitam (vide a cracolândia, que há alguns meses foi limpa com gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral e que, pela falta de qualquer projeto social, está de volta ao mesmo lugar e a todo vapor).

Estatisticamente, os incêndios nem aumentaram, nem diminuíram: estão iguais, mantendo um ritmo sinistro de exterminação de vidas. Favela do Pau Queimado, Favela do Canão, Favela do Jaguaré, Favela do Piolho, Favela do Moinho e tantas outras mais incendiadas por capatazes a mando dos grandes empresários da construção civil, que põem fogo numa favela com a mesma tranquilidade com que acendem seus charutos.

A imprensa,noticiou que as empreiteras e incorporadoras estão entre as maiores doadoras para as campanhas eleitorais, tanto municipais, quanto estaduais e federais. Entretanto, esta frase está incorreta. Estes grupos não doam, investem. E, como todo investimento, querem retorno, mesmo que seja às custas da vida humana: reintegrações de posse, remoções, parques lineares (com o discurso ambiental por trás), enchentes e, o elemento que tem se notado com mais frequência , os incêndios em favelas. O poder público é o sócio majoritário da perversidade da lógica do mercado, num jogo em que se aproveitam da ocupação de espaços ao longo de décadas e da construção de infraestrutura mínima de vida, para depois agir com formas diretas e indiretas de despejos (pelo aumento do custo de vida nessas regiões), atendendo as necessidades insaciáveis da iniciativa privada. São nesses momentos que as mãos invisíveis do mercado têm cores bem definidas.

A crueldade dessa prática se revela ao notarmos que as favelas incendiadas localizam-se, em sua imensa maioria, em áreas de valorização imobiliária, em nítido contraste com a ausência de incêndios em favelas que se encontram em regiões onde a especulação ainda não chegou - nas periferias da cidade, que é onde o poder público quer esconder aqueles que teimam em morar em lugar que não foi “feito para pobre”. O cinismo e o escárnio tomam conta da explicação oficial: o tempo seco. Seriam as periferias de São Paulo mais úmidas que as áreas centrais? Sem dúvida, haverá aqueles que buscarão modelos científicos que legitimem mais uma faceta da violência cotidiana contra a pobreza.

Não é segredo que tais incêndios são criminosos. Contudo, ainda assim, o poder público insiste em não investigar seriamente as causa que transformam uma imensidão de histórias de vida em pó. Tudo ocorre com muita naturalidade: o Corpo de Bombeiros, parte constituinte da Polícia Militar, chega nas ocorrências de incêndio em favela quase sempre com muito atraso, usa seus equipamentos para conter o fogo e, sem que isso seja de sua competência, avalia a possível causa do incêndio. Ao passo que, quando a Defesa Civil chega, não há que fazer nenhum trabalho, afinal, a causa já foi apurada.

A fiação elétrica, o famoso gato, entra como principal vilão de uma cidade com combustão espontânea, seguido por descuidos e conflitos domésticos, afinal, só mesmo em casa de pobre panela de pressão pode virar bomba nuclear e um casal-bomba quer destruir a própria residência construída com tanto esforço.

 Assim, se o Estado, por tudo que já foi colocado neste manifesto, não tem nenhum interesse em buscar as raizes destes incêndios, a sociedade civil está fazendo o papel de denunciá-los e exige explicações.

Com esse manifesto queremos convidar a todos, professores (universitários, da rede publica, da rede particular), estudantes (idem), moradores de comunidades que sofrem a repressão do capital selvagem, cidadãos comuns, para pensar em modelos de urbanização que confrontem essa fome insaciável da especulação imobiliária e financeira; pensar em propostas - e não somente fazer denuncias - que respeitem a autonomia e a historia de vida de milhares de pessoas que, desamparadas pelo poder público e impelidas pela necessidade, em um enorme exemplo de auto-organização e de coletividade, constroem comunidades complexas, com relações de convivência respeitosa e que nada mais querem do que viver na própria moradia, ter acesso à cidade e serem tratadas com dignidade e respeito pela mesma sociedade que as criou e da qual fazem parte. Reconhecer o direito de permanência dessas comunidades é reconhecer o direito à sua própria história.

Por fim, Convidamos a tod@s a endossar esse manifesto e a participar do Ato-debate contra os incêndios na cidade de São Paulo, que será realizado no dia 10 de Outubro na USP, no Prédio da História e Geografia, com a participação de professorxs, trabalhadorxs, estudantes, movimentos sociais e moradorxs das comunidades atingidas pelos incêndios"

Data: 8/10/2012

 



Revista Espaço Aberto da USP, em sua edição 143 apresenta entrevista com Profa. Ana Fani A. Carlos.

Professora da FFLCH dedicou a vida aos estudos relacionados ao espaço urbano

Ana Fani Alessandri Carlos, professora titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), é uma mulher ativa, de grande participação na Universidade em que começou a estudar no ano de 1971. Nascida em São Paulo, no bairro da Barra Funda, de família italiana, casada com um economista e sem filhos, Fani sempre se ligou à cidade em que nasceu, o que ajudou na escolha de seu caminho para estudar o espaço urbano.

No ano de 2012, a professora recebeu um dos prêmios mais importantes da área na qual atua, o “Prêmio Internacional de Geocrítica”. Este é apenas um dos frutos de uma vida toda voltada para a geografia e o estudo do espaço urbano. Além desse prêmio, a professora já recebeu uma menção honrosa do Jabuti e diversas outras homenagens.

Todo esse reconhecimento é fruto de um trabalho teórico complexo sobre a geografia e especialmente sobre os desdobramentos urbanos na metrópole de São Paulo. Fani coordena grupos de pesquisas como o Gesp (Grupo de Estudos Sobre São Paulo), chefiou o programa de pós-graduação em Geografia Humana da FFLCH, orienta teses. Todo esse trabalho visa a uma construção e um respaldo da chamada metageografia, que seria uma geografia voltada para realizar uma crítica do mundo moderno.

“Dou aula há 30 anos. Sou uma professora entusiasmada, eu preparo minha aula, estudo para dar aula”

Em meio a tantas pesquisas e projetos, a professora procurou sintetizar e organizar seus conceitos em diversas publicações e livros. Sendo os mais importantes Espaço-Tempo na Metrópole, A Condição Espacial e A Produção do Espaço Urbano.

Quando adolescente, estudou no Colégio de Aplicação Fidelino de Figueiredo (colégio ligado à Faculdade de Educação), o que, segundo a geógrafa, fez total diferença em sua trajetória de vida. “No Colégio de Aplicação tínhamos uma formação humanística muito importante, de alta qualidade, nos davam uma fundamentação na direção das ciências humanas”, conta.

Tendo finalizado a graduação, começou o mestrado no ano de 1975 e, posteriormente, o doutorado em 1980, sendo todos esses estudos voltados para a análise do espaço urbano. “Quando entrei na Geografia, ouvia os professores dizerem que o espaço é o objeto de reflexão da geografia, mas não entendia exatamente o que era o espaço. Então, o que me moveu a vida inteira como pesquisadora na área foi elucidar como se constitui uma leitura da sociedade através do espaço”, explica Fani.

Em 1982 começou a dar aulas na graduação do Departamento de Geografia da FFLCH com as disciplinas Geografia do comércio e Fundamentos da geografia e, mesmo com o trabalho como pesquisadora e escritora, não deixou a docência de lado e leciona na graduação e na pós-graduação, completando este ano 30 anos de docência. Fani destaca a importância dessa função: “Acredito no fato de que o professor tem um papel de formação da cidadania. Você se torna cidadão quando exerce sua liberdade e acho que a universidade é lugar de exercício dessa liberdade”. A professora se diz ligada à docência desde cedo: “Ser professora foi algo natural, brincava de ser professora quando criança. O ambiente da Geografia só reforçou uma tendência natural de dar aulas”, conta.

Prêmio Internacional de Geocrítica é um dos mais importantes da área

Na trajetória de Fani, destacam-se os estudos e o trabalho no exterior. Em 1989, foi incentivada pelo professor Nilton Santos a fazer pós-doutorado na França. Acabou realizando dois trabalhos: em 1989, na Universidade Paris-5 Descartes e em 1992, na Universidade de Paris-1 Sorbonne. Fani explica por que a França foi o local ideal para os trabalhos de pós-doutorado: “A Geografia na USP foi fundada por franceses e a linha francesa na geografia humana é muito forte, tenho estreitos laços com essa visão da geografia”.

Por toda essa experiência internacional e pela relevância de seus estudos sobre a metrópole de São Paulo e o espaço urbano em geral, Fani deu aulas no exterior: “Acabei conhecendo vários professores e fui convidada a ministrar cursos no exterior. Os cursos de longa duração eu nunca aceitei, porque minha vida particular me impedia de ficar muito tempo afastada do Brasil”, explica.

Ainda assim, vivenciou diversas experiências enriquecedoras como docente: “Cheguei a dar aula na pós-graduação em Barcelona, além de Buenos Aires e Cidade do México”. A professora conta sobre os temas que abordava: “Todos eles queriam me ouvir falar sobre a metrópole de São Paulo ou sobre a geografia urbana que se faz na USP”. Como a intensa produção acadêmica continua, a professora ainda é muito requisitada: “Recebo convites de várias pessoas para ir ao exterior, para discutir certos temas. O circuito acadêmico tem sido cada vez mais internacional”, conta.

Dentre todas essas atividades, destaca-se o Gesp que, segundo Fani, é um ambiente de estudo e pesquisa sobre urbanização contemporânea, tendo sempre a cidade de São Paulo como objeto de investigação. A professora acredita que formar grupos como o Gesp é algo coerente com sua trajetória acadêmica: “Durante minha vida, sempre participei de grupos de pesquisas. Por isso, acho natural criar um voltado para minha área”, explica. O grupo que começou com ela e seus orientandos em 2000 tomou outra dimensão e agora incorpora professores de outras universidades, além de organizar colóquios, workshops e seminários.

Dedicação ao estudo do espaço urbano rendeu diversas homenagens

O Gesp possui uma editora on-line, criada pelo grupo, que disponibiliza suas publicações no site, para que outros pesquisadores possam ter acesso à linha teórico-metodológica. Segundo Fani, é importante facilitar o acesso ao material produzido pelo grupo: “Nós temos uma linha de pesquisa bem fundamentada. A editora eletrônica dá visibilidade aos trabalhos realizados com essa linha de geografia urbana que só existe como linha no Departamento de Geografia da USP, esse é o motivo”.

O Prêmio Internacional de Geocrítica 2012 só confirma todo o esforço da professora, dos seus companheiros de departamento e de seus orientandos. A ata do prêmio destaca o trabalho realizado, um trecho do documento diz: “Ao conceder este prêmio a Ana Fani Alessandri Carlos, queremos fazer um reconhecimento público da importância desse grupo de geógrafos da USP”. Parece que optar pela geografia foi uma escolha correta na vida da paulista, como reconhece a parte final do documento: “Valorizamos também a abertura de pensamento da professora e seu forte compromisso com a geografia. Além de acompanhar, desde os primeiros anos de sua formação, o desenvolvimento da economia, sociologia e planejamento urbanos, construindo pontes entre eles”.

Publicado em www.usp.br/espacoaberto

 

"Contra o produtivismo, um protesto solitário." Por Ana Fani Alessandri Carlos

Compreender as condições nas quais se reproduz a sociedade brasileira, iluminar os conflitos e a condição profundamente desigual desse processo, requer dos pesquisadores a disposição de "habitar o tempo lento" imposto pela atividade do conhecimento. Esta compreensão – como prova a história do conhecimento – não é individual, pois pressupõe o debate de ideias entre pares, fundado no respeito à diferença e nas possibilidades postas pela diferença de vertentes e posições teórico- metodológicas que, antes de se conflitarem, se enriquecem. Esse processo exige tempo e condições de trabalho, exige também compromissos, e exige, ainda, disposição para o debate. O trabalho individual de reflexão/análise se coloca como pressuposto da elaboração do conhecimento, condição do debate.

Nesse sentido, se não há uma verdade absoluta que se eleva no horizonte, tampouco existe somente um único caminho possível para pensar/interpretar o mundo. Por outro lado, penso que nosso papel na universidade é o de ensinar formando cidadãos, criando condições, dando-lhes ferramentas para construir essa interpretação. Mas, sem uma pesquisa que se debruce sobre a realidade, sem uma reflexão profunda e sem fundamento, exigidos pelo árduo trabalho de "gabinete", o que vamos ensinar-lhes?

Não sendo o único centro de produção do conhecimento, a universidade é, no entanto, o lugar precípuo desta possibilidade, que, para se realizar, precisa criar as condições necessárias dessa atividade. Trata-se de abrir espaços onde, sem preconceitos, possa desabrochar a diferença dos modos de pensar o mundo. A condição de independência e do exercício da liberdade de pensar se apoia na realização desta virtualidade. Mas o tempo da reflexão, cada vez mais consumido em papéis (hoje virtuais), relatórios e pareceres, de todos os tipos, definha sem percebermos. Em todos os lugares, a conversa aponta a "falta de tempo".

Não importa se nosso trabalho analisa o mundo, desvenda suas contradições mais profundas; se com a produção de um saber construímos os caminhos de um país independente. A universidade espera resultados quantitativos, muitos artigos publicados – ninguém se pergunta ou questiona seus conteúdos, se guardam alguma possibilidade fecunda de conceber este mundo e nossa realidade desigual e dependente - muitas participações/organizações de congressos, seminários, worshops - não importa se com eles aprende-se algo, se depois de exporem seus trabalhos as pessoas se dão ao, trabalho de permanecerem para o debate. E ainda poucos se preocupam com os debates, posto que o centro das preocupações é o certificado de uma "presença ilusória". Mas há mais. Solicitação de pareceres de todos os tipos, salas apinhadas, reitores autoritários, falta de ambiente acadêmico.

Diante deste cenário e da necessidade sempre ampliada do preenchimento do lattes, o que fazer? Há muitas estratégias. Posso correr de um colóquio a um workshop apresentando trabalhos "quase iguais, etc. “Estou tão cheia de trabalho burocrático que ainda bem que meus alunos escrevem artigos e colocam meu nome; senão não teria nada no currículo". Foi o que ouvi, quase literalmente, de uma colega em uma de minha viagens.

Outro dia, ao abrir a internet para ver o último lançamento de uma revista, constatei que uma porcentagem considerável dos artigos estava assinada tanto pelo seu autor verdadeiro quanto pelo seu orientador. Façamos uma conta, rápida: 10 orientandos escrevendo 2 artigos por ano somam 20 artigos no "currículo Lattes" de seu orientador. Parece tentador!

"Se os outros programas de pós-graduação fazem isso para aumentar a nota junto à CAPES, também faço...", ouvi de outro colega, coordenador de um programa de pós-graduação! Por uma nota melhor – em substituição ao reconhecimento e importância da produção acadêmica realizada– cada programa de pós-graduação torna-se não um parceiro de debate, mas, antes, um competidor. Mas até que ponto a CAPES (que somos nós) privilegia e cobra esse comportamento destrutivo dos professores? Onde e quando foi decidido pela comunidade geográfica que o mestrado deve ser concluído em 18 meses? Que se deve publicar cada vez mais (não importa com que conteúdo), que orientadores devem assinar, como coautores, pesquisas orientadas, quando sabe-se que existe até mesmo lei de direto autoral indicando que orientador não é coautor (lei cuja existência de maneira alguma substitui a ética)?

Será que a comunidade acadêmica está contente com essa situação? Quando foi que perdemos nosso discernimento e consciência sobre nosso papel de educadores, de formadores, de pensadores?

Um manifesto do GEU – Grupo de Estudos Urbanos –, que apontava com mais profundidade e amplitude essa situação durante o Simpósio de Geografia Urbana realizado em Brasília em setembro de 2009 caiu no vazio. Ainda outro dia recebi um e-mail de "corajosos professores da Paraíba" que se desligaram de seus programas de pós em protesto contra este estado de coisas. Decisão solitária, sem prováveis seguidores. Isso não soa como um alerta?

Nossa associação estaria preocupada com a situação dos programas de pós-graduação em Geografia e com as condições em que se realiza o ensino e a pesquisa, no Brasil? Ou a avaliação é de que "tudo vai bem"? Não seria o caso da ANPEGE abrir, em seu calendário, um lugar de debate para revermos essas práticas produtivistas e anti-éticas? Faz-se necessário que cada programa de pós-graduação veja no outro um parceiro de debate, um cúmplice na produção do conhecimento sobre a realidade brasileira.

Estou absolutamente convicta do papel da Geografia na compreensão do mundo moderno, onde o espaço vem assumindo um protagonismo inédito na compreensão da realidade de hoje. Mas isto exige trabalho de pesquisa, reflexão, ambiente de debate.

Meu protesto solitário: retiro-me da comissão científica de todas as revistas brasileiras das quais participo e que aceitam artigos em coautoria orientador/orientando sobre pesquisas orientadas, como procedimento correto e justificável.

(publicado em geometropole.blogspot.com)