A proteção da natureza como condição da reprodução

Isabel Aparecida Pinto Alvarez*

Resenha do livro: SCIFONI, Simone. A Construção do Patrimônio natural. São Paulo: Labur Edições, 2008, 199p.
 

O mundo moderno nos coloca diante de desafios práticos e teóricos de grande envergadura, uma vez que os diferentes níveis da reprodução social estão permeados pela lógica da reprodutibilidade econômica e da racionalidade estatal. A reprodução do capital há muito, deixou de estar circunscrita apenas à produção strictu sensu de mercadorias, para alcançar os diferentes níveis da reprodução social, o que envolve, necessariamente, o processo de produção e reprodução do espaço.

Entende-se o espaço como produto histórico e social, constituindo-se como parte do processo de produção da existência humana, do processo civilizatório que se realiza por meio do trabalho, iluminando em cada momento da história, os conteúdos deste processo. No capitalismo, trata-se de pensar o movimento da reprodução de um lado, como reprodução das necessidades da acumulação do capital e, de outro, como a reprodução das condições de realização da vida. Neste sentido, o processo envolve a repetição (de relações, da produção, de objetos, de necessidades) e, dialeticamente, a possibilidade de criação do novo que, não elimina por completo a repetição. No tocante ao espaço, considerar o produzido como condição geral da produção, o que supõe a sua conservação, e a produção do novo, como necessidade.

A análise das contradições que emanam das práticas sócio-espaciais e que envolvem a articulação entre o político, o econômico e o social na apropriação e dominação da natureza, emerge como preocupação fundamental na obra “A Construção do Patrimônio natural”, de Simone Scifoni.

Reunindo informações significativas com base em dados da UNESCO, do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico Arqueológico Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo) a obra desvenda o papel e o sentido das políticas de preservação da natureza, trazendo à tona uma análise crítica destas políticas, superando o discurso costumeiro da preservação da natureza como um bem e uma demanda universal. Analisando as políticas de proteção da natureza como parte das contradições que alicerçam a nossa época, a autora entende-as, de um lado, como instrumentos de resistência social por parte dos grupos que, através delas, lutam pela permanência e valorização do espaço público e afirmam a necessidade da apropriação sobre a privatização. Por outro lado, estas políticas são também entendidas como resultado de necessidades formuladas no seio da própria reprodução do capital e dos interesses do Estado, inserindo-se como elementos fundamentais na expansão do turismo, do consumo, da racionalidade e hierarquização do espaço. Com esta premissa, a autora descortina, por exemplo, a Lista de Patrimônios da Unesco, mostrando a natureza político-econômica nas escolhas dos bens tombados, revelando o seu caráter geopolítico.

Mas, o enfoque principal da pesquisa realizada está nas políticas de proteção da natureza, através dos processos de tombamento que dotam certas porções do espaço da condição de Patrimônio Natural. Através desta condição, instituem-se normas e diretrizes jurídicas que acabam por exigir dos agentes (públicos e privados) diretamente envolvidos no processo de produção do espaço, redefinições de estratégias e ações. O estudo de caso específico diz respeito ao papel do tombamento da Serra do Mar (SP), na reprodução do espaço do litoral norte paulista.

Contextualizando o momento histórico e mostrando as características e fragilidades naturais da escarpa da Serra do Mar e do litoral que a ela está integrado, a autora revela que houve uma iniciativa pioneira no estado de São Paulo, por parte de alguns cientistas e do poder político em instituir o tombamento desta unidade de paisagem, com o intuito de preservá-la, em meados da década de 1980, através de processo constituído pelo CONDEPHAAT.

Analisando criticamente o modo como esta condição de preservação se inseriu no processo de reprodução espacial, a autora demonstra que, ao definir critérios, diretrizes e políticas de uso e manejo desta extensa área, criou-se a condição necessária para viabilizar a continuidade e o aprofundamento do papel que o litoral norte vinha ocupando na divisão espacial do trabalho da metrópole de São Paulo: consolidar-se como uma área de veraneio para turismo de segmentos sociais de alta renda. A articulação entre os interesses econômicos e o poder político na condução deste processo, revela-se nesta obra.

Se a sólida pesquisa empírica e de levantamento de dados sustentam a argumentação ao longo do texto, é a opção teórico-metodológica que fundamenta e enriquece a análise, possibilitando a compreensão do papel do tombamento de áreas naturais no processo de reprodução do espaço, na atualidade.

Abraçando a hipótese teórica aventada por Lefebvre da constituição da sociedade urbana, Scifoni entende o urbano como a totalidade do processo. Através desta perspectiva, a autora entende que a reprodução do espaço geográfico no litoral norte paulista não se constitui numa unidade de análise em si, mas sim como parte de uma totalidade de consolidação do urbano, sob o comando dos interesses presentes na metrópole de São Paulo.

Reconstituindo historicamente os diferentes momentos da composição do tecido urbano que abarca esta porção do litoral, a autora elenca o processo de tombamento da Serra do Mar, como marco deste processo. Mostra que a ocupação do Litoral Norte como área de veraneio para uma classe social mais abastada não nasceu com o tombamento da Serra do Mar, mas foi justamente a sua inserção como área protegida que garantiu que a natureza fosse transformada como a nova condição do processo de reprodução espacial.

Na medida em que o processo de implosão e explosão da metrópole paulista se intensificou, gerando uma extensa e contínua mancha urbana, densamente edificada, a natureza tornou-se raridade e passou a ser incorporada como mercadoria valiosa nos empreendimentos imobiliários. Neste contexto é que o tombamento da Serra do Mar, enquanto política de preservação da natureza emergiu como necessidade e resultado da reivindicação legítima de acadêmicos e entidades ambientalistas, mas também foi impulsionado por aqueles que tinham interesse em valorizar o seu patrimônio imobiliário já constituído ou a constituir. Para que o par mercado imobiliário-turismo de alta renda se consolidasse, era preciso diferenciar o padrão de edificações e urbanização desta porção do litoral e, neste sentido, a necessidade de proteger a natureza apresentou-se como justificativa fundamental.

Segundo a autora, o tombamento da Serra do Mar não foi um obstáculo ao desenvolvimento econômico dos municípios do Litoral Norte, pois se foram reprimidas certas atividades como a mineração, fortaleceu-se a expansão da atividade turística associada à produção da segunda residência. Assim, de modo geral, ao contrário de coibir os interesses econômicos e a dinâmica de fragmentação e hierarquização do espaço, pautada na propriedade privada da terra, o tombamento acabou por ser o álibi perfeito para que determinados grupos econômicos e sociais se apropriassem privadamente de certas paisagens e da natureza, aprofundando a segregação sócio-espacial. Vale ressaltar que a partir dos anos 1990, essa dinâmica se expandiu com a franca parceria do Estado, através de flexibilizações e desregulamentação na legislação de proteção, favorecendo nitidamente certos grupos sociais e interesses econômicos. Neste sentido, este trabalho de Scifoni aponta para o fato de que a proteção da natureza transformou-se em condição à reprodução do espaço geográfico e deve ser analisada, necessariamente, como conteúdo da sociedade urbana em constituição.


*Isabel Aparecida Pinto Alvarez, Profa.  do Departamentod e Geografia da USP. Membro do GESP – Grupo de Estudos sobre São Paulo – LABUR/USP.